São 03 da manhã e ele
ainda nem pregou o olho, já fazem mais de 24 horas sem dormir. Não é como se
ele não quisesse, ele gostaria muito de dormir “de preferência para sempre”,
pensa ele, contudo mal esse pensamento chega a sua cabeça ele o afasta,
balançando-a freneticamente, enquanto dá um forte tapa em sua testa “Deus
castiga pensar nestas coisas”, a voz de sua mãe soa alto e claro em sua mente,
mesmo depois de tanto tempo.
A vida não é exatamente o
que ele esperava quando era criança. Pode se lembrar dos sonhos que tinha, de
como imaginava que sua vida seria diferente do que via na casa de sua mãe.
Crescer sem pai foi foda, a pouca grana e as dificuldades financeiras também
não ajudaram. Mas ele sonhava, sim ele sonhava com a possibilidade de uma vida
diferente e isso o fazia seguir em frente.
No entanto a vida não é
exatamente como se vê nas comédias românticas de Hollywood, às vezes está mais
para um filme do Quentin Tarantino ou um livro do Stephen King e essa foi mais
ou menos a balada de sua vida. Não acreditava em astrologia, mas se acreditasse
diria que o universo conspirava contra ele, a coisa mais simples do mundo era um
verdadeiro parto pra ele conseguir.
À primeira vista era um
cara legal, sorriso fácil, brincando sempre e fazendo piada com tudo, a maior
parte das pessoas achava que ele não tinha nenhum tipo de preocupação. O jeito
e rosto que não aparentava a idade que tinha de fato contribuía muito para lhe
dar um aspecto bastante jovial.
Detestava falar de si,
mas era um ótimo ouvinte. Na verdade se sentia bem ouvindo os problemas alheios
e quando lhe era pedido dava sua opinião, não poucas vezes ouviu dos outros: “Nossa
é muito bom conversar com você, você sempre sabe o que dizer, me ajudou muito”.
Ajudava a todos, só não conseguia ajudar a si mesmo.
Sua cabeça era uma
verdadeira bagunça, um enorme misto de traumas, frustração, culpa, ressentimento
e raiva, muita raiva. Raiva pelo seu pai que o abandonou, por sua mãe que não
soube dar outro fim à raiva e à frustração dela e que descontava nele o
agredindo física e psicologicamente, raiva de todos aqueles de alguma forma
traíram sua confiança e acima de tudo, raiva de si mesmo por ser tão fraco.
Era solitário, não podia
contar com ninguém, aprendera isso cedo. As pessoas simplesmente não se
importam, mesmo quando perguntam se tudo está bem, elas perguntam esperando uma
resposta positiva, não sabem o que fazer diante da negação, então pra evitar
constrangimentos ele apenas sorri e diz “Beleza, tudo legal”, afinal de contas
o que ela poderia fazer?
Já são 5 da manhã e mais
pensamentos ruins vêm à sua mente: cada pessoa que o sacaneou, cada pessoa que
o usou e cada uma que foi usada por ele (em sua defesa ele tem o fato de sempre
ter sido sincero, nunca ter mentido pra ninguém, aparentemente algumas mulheres
não tiveram a mesma consideração com ele).
Ele levanta pra ir ao banheiro,
e deseja intensamente que ao invés de urina o que tivesse saindo de si fosse
sua própria vida. Primeiro ele sorri, depois balança a cabeça pra espantar o
pensamento: “Deus castiga” disse sua mãe. Deus, ahhhhh Deus...
Termina de mijar, e ao lavar
as mãos dá de cara com o espelho do armarinho do banheiro. Olha para o espelho,
mas não reconhece a imagem o que encara de volta, quem era aquele cara? Ele
ergue as mãos como se quisesse tocar o rosto que o mirava no espelho e, olha
que legal, o carinha do outro lado faz a mesma coisa, talvez seja tão solitário
quanto ele... De repente se dá conta que é apenas a imagem de sua cara cheia de
olheiras que está lá refletida, as olheiras fruto de uma série de noites de
insônia, insônia essa que nem remédio estava dando mais jeito.
Os remédios... Ele abre o
armarinho do banheiro e os encontra, vários vidrinhos, tarjas pretas e
vermelhas. Dar um jeito nessa situação seria relativamente fácil, tomava uns 15
de tarja preta e mais uns 20 de tarja vermelha e pra poder descer usava a vodka
que o aguardava no mini bar que tinha na sala, depois deitaria e dormiria pra
nunca mais acordar e então nada mais importaria, pensou em seu enterro e em
como não teria ninguém em seu último dia antes de servir de pasto para os
vermes, e enquanto pensava ele sorria...
Entretanto o som do
latido de um cachorro o despertou de seu devaneio, ele olha pelo basculante do
banheiro e já é dia claro, o seu celular no quarto desperta indicando que ele
não poderia se dar ao luxo de pensamentos tão agradáveis agora.
Entra no box, toma um
banho, troca de roupa e vai comprar pão, desejando que algo aconteça e ponha
fim em sua existência: uma bala perdida, um carro desgovernado, um meteoro
caindo, um bueiro explodindo, um pombo fazendo cocô em sua cabeça e ele
morrendo de traumatismo craniano, qualquer coisa (e ao pensar no pombo sorri de
novo).
No entanto nada acontece, ao chegar na padaria
a balconista o saúda com um bom humor irritante para aquela hora da manhã: “bom
dia, lindo dia né? A vida é realmente maravilhosa”. Ele a encara por um microssegundo
pensando se deveria dizer a ela tudo que sentia, preferiu apenas retribuir o
sorriso e dizer “É, a vida é realmente boa”... Afinal de contas era só mais um
dia como outro qualquer...